Desafio da não adesão ao tratamento na perspectiva de uma pessoa com Fibrose Cística

Artigo Original nomeado “Contraponto: Enfrentar o desafio da não aderência: Construção do relacionamento paciente-provedor — perspectiva de um paciente”, publicado no Journal of Cystic Fibrosis 16 (2017) 306–307, de autoria de Christopher M. Kvam

Sobre o Autor: Meu nome é Chris Kvam. Fui diagnosticado com fibrose cística em 1984, e tenho atualmente 36 anos de idade. Senti-me honrado pelo convite para escrever este contraponto e aceito com humildade a tarefa, reconhecendo que minha voz fala apenas por mim, e não por muitas pessoas com fibrose cística e suas famílias. Sou advogado, tenho experiência em política de saúde, e profundo interesse em bioética. Trabalhei em conjunto com pesquisadores e clínicos no desenvolvimento e na elaboração de diretrizes e ferramentas clínicas nas áreas de cuidados de saúde mental em clínica de FC; transição do cenário pediátrico para o adulto nos cuidados de FC; e adesão ao tratamento. Abaixo, faço alguns contrapontos sobre adesão ao tratamento relacionado à artigos que li.

Na primeira leitura do trabalho apresentado pelos autores, minha reação imediata foi consultar meu velho livro de Bioética, definir Paternalismo, e descrever um desfile de horrores – listando os estudos do Tuskegee Institute’s Syphilis (instituto de pesquisa da Sífilis na cidade Tuskegee, Alabama), o abuso do povo indígena pela Universidade de Adelaide na década de 1920, a esterilização sistemática de pessoas com deficiências de desenvolvimento que acompanhou toda a medicina ocidental, e assim por diante –, destacando em cada instância disponível por que razão a zona de discrição parental dos autores está nomeada de maneira completamente incorreta, dado que a zona de discrição do médicocomeça e termina com o consentimento do paciente ou de seu pai.

Embora este ponto seja importante, reconheço que tal abordagem não ajudaria nem informaria as equipes de cuidados, bem como os pacientes e suas famílias, em relação a como lidar com instâncias de conflito ou desacordo ao longo dos cursos de tratamento. Nesta edição do Journal, Massie et al. destacam, (tanto) pais como equipes de tratamento acreditam estar agindo da melhor forma para o bem da criança…” [1]. Não questiono esse sentimento, e por isso concentro meu contraponto nas maneiras de redirecionar e abordar as instâncias de conflito entre as equipes de cuidados e os pacientes ou famílias que não aderem aos tratamentos recomendados, embora respeitando a preeminência do consentimento dos pais no tratamento de seus filhos com FC. Também reconheço e aprecio o profundo sentimento de frustração e desamparo, gerador da “angústia moral” sentida por médicos e equipes de cuidados, quando os pais não aceitam ou não cumprem as recomendações médicas completamente, ocasionando prejuízo à saúde de seus pacientes. Estas são questões sérias. Recusar o texto dos autores sem reflexão seria muito injusto para os pacientes, bem como para as equipes de cuidados.

Em relação aos três estudos de caso apresentados pelos autores, concordo que o Caso 1, tal como descrito exige, sem dúvida, relatório clínico e intervenção do Estado através do sistema judicial, devido aos prejuízos significativos advindos da negligência clínica do pai. Contudo, é importante notar que a análise deste caso é binária — ou está ocorrendo abuso ou negligência, ou não está. Se os prejuízos significativos e certos, e as respostas clínicas correspondentes certas e efetivas não forem apresentados, a intervenção judicial não acontecerá. Por essa razão, acredito que esse estudo de caso, em última análise, não é útil para ajudar as equipes de cuidados a lidar com os casos muito mais frequentes e mais complexos de não aderência parcial e conflito. Além disso, enfraquece qualquer utilidade prática de uma análise teórica da área de critério parentalapresentada pelos autores.

O conceito de área de critério parental dos autores apresenta a própria ausência de utilidade em abordar os estudos de casos 2 e 3, mais complexos, nos quais os riscos à saúde imediata da criança, e a certeza do resultado desejado a partir dos tratamentos recomendados são ambos diminuídos. Os autores reconhecem que os pais estão dentro de seu critério para consentir ou não nos tratamentos recomendados, mesmo com o possível prejuízo de seus filhos. Então, o que as equipes de cuidados devem fazer? Ofereço três sugestões: 1) Abordar e tratar o problema de ansiedade e depressão dos pais. 2) Redefinir e reorientar os objetivos dos relacionamentos com pais e pacientes. 3) Aceitar que, embora a vida com FC seja incerta, o relacionamento paciente/médico é longo, e a partir dessa realidade tratar a questão adequadamente.

Primeiramente, os autores identificam corretamente várias respostas emocionais e comportamentais ao diagnóstico de FC dos filhos, que explicam algumas ocorrências de pais resistentes ao aconselhamento médico das equipes de cuidados. Mas, surpreendentemente, os autores não recomendam abordar tais questões de negação, depressão ou ansiedade, que muitas vezes estão na raiz do conflito. Isso é surpreendente dado o corpo da pesquisa que encontrou taxas elevadas de depressão e ansiedade entre os pais de crianças com FC [2], e a publicação de diretrizes de rastreamento e tratamento para abordar tais questões [3]. Sem o rastreamento e o tratamento efetivo da depressão e da ansiedade dos pais, talvez não seja de surpreender que tais questões se manifestem e tenham impacto negativo nos cuidados da criança, como descrito ao longo de todos os três estudos de caso.

Em segundo lugar, em todo o artigo, os autores enfatizam a completa aderência aos tratamentos de FC recomendados como o resultado ideal do relacionamento entre os pais e a equipe de cuidados. Aí há um desvio que coloca as equipes de cuidados acima da angústia moral descrita pelos autores. Considerando a ampla gama de experiências individuais dos pacientes, o amplo espectro de gravidade da doença, as emergentes diferenças no tratamento baseadas no genótipo da FC, talvez os clínicos tenham mais a ganhar reconhecendo mais plenamente que: 1) mesmo em caso de aderência total às recomendações da equipe de cuidados, a FC continua sendo uma doença progressiva. 2) A lista crescente de tratamentos disponíveis para a FC revela que a aderência a todos eles talvez seja despropositada, e em algum momento não seja uma expectativa ideal, dados os valores concorrentes com educação escolar e com outro aspecto normal no desenvolvimento infantil. 3) Há uma séria necessidade de lidar com o impacto emocional da falta de acesso aos produtos farmacêuticos mais recentes, como Orkambi e Kalydeco, em países ou instâncias individuais onde o acesso foi negado devido às decisões de financiamento do governo. Da mesma forma, em relação ao acesso das famílias aos sistemas ou planos de saúde disponíveis. Todos os três exemplos citados apontam maneiras como os clínicos podem transitar das posições adversárias aos tratamentos e às expectativas de aderência, para as parcerias empáticas com as famílias e os pacientes, na intenção de encontrar melhores cursos de tratamento possíveis, considerando-se as necessidades individuais de seus pacientes.

Finalmente, ao reconhecer, como fazem os autores, que continuar a tentaré moralmente indiscutível desde que as equipes de cuidados estejam constantemente em contato com os pais de seus pacientes, onde quer que estejam, e ao se concentrar em maximizar não apenas os resultados do TFP, mas, sobretudo a qualidade de vida de suas crianças com FC, as equipes de cuidados terão muitas oportunidades de construir a confiança necessária para obter o consentimento dos pais para terapias que não foram consideradas aceitáveis anteriormente. Reconhecer as preocupações dos pais em relação aos riscos e efeitos colaterais, ser empático em relação às opções que parecem ser uma escolha entre alternativas distantes das ideais, e aceitar certa hesitação por algum tempo desenvolve a credibilidade e a confiança necessárias para mudar as mentes, e avançar em direção a um acordo mais abrangente entre pais, pacientes e equipes de cuidados.

Referências

[1] Massie J, Morgan A, Gillam L. When is too little care, too much harm in cystic fibrosis? Psychological and ethical approaches to the problem. J Cyst Fibros 2017;16:299303.

[2] Quittner AL, Goldbeck L, Abbott J, Duff A, Lambrecht P, Solé A, et al. Prevalence of depression and anxiety in patients with cystic fibrosis and parent caregivers: results of The International Depression Epidemiological Study across nine countries. Thorax 2014;69:10907.

[3] Quittner AL, Abbott J, Elborn JS, Georgiopoulos AM, Goldbeck L, Marshall BC, et al. Cystic Fibrosis Foundation and European Cystic Fibrosis Society Consensus statements for screening and treating depression and anxiety. Thorax 2016;7:2634.

http://dx.doi.org/10.1016/j.jcf.2017.02.004

1569-1993© 2017 European Cystic Fibrosis Society. Publicado por Elsevier B.V. Todos os direitos reservados.

¹ Teste de função pulmonar

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